Por falar em assaltos

O assalto ao Louvre tem-me feito pensar no meu museu preferido, o Isabella Steward Gardner Museum, em Boston, que foi palco do maior roubo de arte da história dos Estados Unidos. Na movimentada noite de St. Patrick’s, em 1990, dois homens mascarados de polícia assaltaram o museu e levaram treze obras avaliadas em quinhentos milhões de dólares, incluindo a Tempestade no Mar da Galileia, de Rembrandt, o Concerto, de Vermeer, e vários Degas. Apesar da grande operação policial montada pelo FBI, e da generosa recompensa oferecida, as pinturas nunca apareceram, e até hoje só restam as molduras vazias.

A perda é triste, não só pelo valor das obras, mas porque o museu de Isabella não é uma coleção de quadros “qualquer”, mas um retrato de vida, amizade e civilização. 

Isabella nasceu em 1840 numa família muito rica de Nova Iorque, educada em Paris, e habituada, desde cedo, a viajar pela Europa. Foi numa dessas viagens que visitou o Palácio Poldi Pezzoli, que viria a inspirar a estrutura do seu museu. Quem entra no museu, entra num pequeno recanto que não pertence bem a Boston. Um palácio veneziano invertido, onde se vê por dentro o que um palácio teria do lado de fora: janelas redondas espanholas, vitrais italianos, e um jardim interior com estatuetas, rodeado por um claustro, e iluminado por uma grande clarabóia.

 

        Em Paris, a melhor amiga de Isabella era Julia Gardner. Quando Isabella foi visitar Julia a Beacon Street, em Boston, foi convidada pelo irmão de Julia, Jack, a passear por Boston Common e os seus jardins, de onde voltaram noivos. Jack apreciava nela a forma alegre de ver as coisas. Por exemplo, num livro que a mãe lhe deu, sobre boas maneiras para mulheres, completou, a lápis, os títulos do índice, com frases a que achou graça:

 

        Infelizmente, precisou muito desta alegria interior, porque depois de ter perdido o seu único filho, Isabella conseguiu encontrar na procura da Beleza uma vocação. Jack e Isabella viajaram juntos, muito, para lugares que naqueles tempos não eram propriamente acessíveis. Foram a Roma, à Terra Santa, à Síria, à Grécia, ao Líbano, ao Cairo, ao Japão, a Norte de África, à China, à Índia, a Singapura, e a muitos outros destinos. 

        Em todos eles, Isabella fazia álbuns maravilhosos, onde descrevia o que sentia em cada lugar, inscrevia datas e frases, ilustrava a viagem com aguarelas, recolhia e comprimia flores (uma papoila cor-de-rosa de Joppa, um ramo de tomilho do Calvário, uma folha de louro no Mar Morto), e guardava tecidos e fotografias. Olhava para tudo com muita curiosidade, como olhou, por exemplo, para as mulheres do Cairo, que passeavam com jarros de água na cabeça, tendo descrito como rezavam, cantavam, apreciavam o seu café, e se vestiam com os seus turbantes.




           (Páginas do seu álbum de viagem do Cairo e Japão, respetivamente)

        No museu, cada sala representa uma viagem, e contém não apenas quadros, mas também mobília, tecidos, espelhos, manuscritos, fotografias e cartas. Na ala Oriental podemos ver, por exemplo, kimonos que trouxe do Japão, abanos pintados, um pedestal de madeira dourada em forma de lotus, três budas e o seu biombo, representando O Conto de Genji, ao lado de uma caixa japonesa oferecida por Henry Higginson. Tem piada pensar que os objetos foram recolhidos pela própria. 

        A história do museu é também uma história de amizade. Isabella valorizava os amigos, e parece até que dispunha as salas para os honrar e receber. Por exemplo, em homenagem a Okakura, que apresentou o seu livro sobre chá no Museu, Isabella incluiu na sala um armário com peças do serviço de chá que ele lhe ofereceu. Era amiga de Brahms (cujos cigarros guardou num envelope e expôs no museu, juntamente com partituras autografadas), e de Sargent (que a pintou com braços destapados, escandalizando a sociedade conservadora de Boston, e que trabalhou e viveu um mês no museu). O Museu tem o primeiro Matisse alguma vez exposto nos Estados Unidos, que lhe foi oferecido por um amigo arqueologista, Thomas Whittemore, e vários quadros de Zorn (convidado por Isabella para expor pela primeira vez na América).

        Quando os vitrais da Catedral de Reims foram destruídos, na Primeira Guerra, e foi preciso pensar como conservar os pedaços de vidro, os amigos de Isabella lembraram-se de os enviar para Boston, onde estão ainda no Museu, enquadrados num painel.


        


     Isabella era divertida e irreverente. Arranjou um estratagema para poder, como mulher, participar discretamente num leilão, em que se sentava numa zona da sala onde só o leiloeiro a via, e demonstrava o seu interesse num objeto, segurando um lenço um bocadinho acima da boca. Foi assim, praticamente invisível e aparentemente inofensiva, que conseguiu comprar um valiosíssimo Vermeer.

        Uma vez, atrasada para chegar à inauguração de uma carruagem, alugou uma locomotiva a vapor que entrou na estação quase no momento em que a carruagem partia, com Belle confortavelmente instalada ao lado do maquinista. Conta-se que quando as grandes vigas de madeira destinadas ao teto da sala gótica do terceiro andar do museu não lhe pareceram suficientemente toscas e medievais, pegou num machado e marcou ela própria uma das vigas, tal como se lembrava de ter visto numa das suas viagens. Também foi ela quem subiu a uma escada, mergulhou uma grande esponja num balde de tinta cor-de-rosa e depois noutro de tinta branca, mostrando aos pintores como deviam aplicar a mistura na parede para imitar o mármore dos palácios venezianos. 

        Isabella pensou na cor perfeita e exata para as paredes de cada sala, e encomendou especificamente um tom de azul profundo usado na galeria de esculturas de Stefano Bardini, um antiquário de Florença. O ambiente do museu é tão confortável, que Isabella teve um dia que correr para interromper um visitante que, fascinado, tentava cortar um pedaço de tecido de uma parede. Percebe-se a tentação, porque Isabella tinha sempre os vestidos mais bonitos dos bailes, e forrou uma sala com o tecido de um deles.


 


        Isabella dedicou anos da sua vida a escrever as regras de funcionamento do museu, com instruções muito claras quanto ao horário de funcionamento, à forma de vigilância, ao número de jardineiros que devia ter, etc. Chegou mesmo a escrever: “deve haver um vigilante de dia e outro de noite, um para cada turno. Devem encarregar-se da fornalha.” 

        Apesar de tudo, o museu acabou por ser assaltado, o que me deixa muito triste, e como jurista também perplexa. É que parece que o testamento deixado por Isabella dizia que se alguma coisa no museu fosse permanentemente alterada, a coleção deveria ser retirada e vendida em leilão em Paris, devendo o dinheiro ser entregue à Universidade de Harvard. Ainda ninguém parece ter levantado a questão, mas pergunto eu: quid juris?













Comentários