Isto não é a América

 Porto, 3 de janeiro de 2025


    Não gostava nada dos filmes de Natal americanos porque os achava irrealistas e sempre iguais. Este ano, porém, corri o sério risco de ser notificada de atividade suspeita na minha conta da Netflix, ao ter esgotado os filmes da categoria Natal e ouvido a própria mãe questionar a minha identidade - Joana? - quando eu entrava triunfante na sala a saber que filme de Natal íamos ver naquele dia. Deve-se o feitiço a ter conhecido melhor os americanos, sempre tão simpáticos e acolhedores, que conseguem tornar cada sítio num lugar especial devido à proximidade que criam com os outros. Não cabe na cabeça de um americano não querer saber dos planos de viagem da pessoa que tem à frente na fila do check-in, não perguntar ao calmo cliente do café sentado ao seu lado o que acha do caso que vem anunciado na capa do jornal que está a ler, ficando de tal forma envolvidos na conversa que deixam cair um objeto seu no saco do outro, enquanto falam, como no filme ‘meet me next christmas’.

    Também não é irrealista que uma executiva de Nova Iorque, de regresso à sua cidade pequena, no Natal, reencontre o colega de escola e decida dedicar-se a fazer bolinhos na padaria que ele gere sozinho. O problema deste feitiço é que tendo a recriar cenários por todo o lado, a propósito de quase tudo. Para piorar, abriu uma gelataria na Rua Senhora da Luz, pequenina, com janelas largas até ao chão por onde entra o sol, com painéis e tectos pintados à mão, magnificamente recuperados pelos donos da loja e tão antigos que conseguimos imaginar o elétrico a passar à porta. A gelataria é perfeita para estes filmes porque tem quatro mesas próximas, juntas ao balcão, o que permite aos clientes conversar uns com os outros, além de que deixa entrar cães e assim se cria o primeiro romance: dois estranhos enrolados na trela, que deixam de o ser. 

    Claro que já imaginei outros enredos: numa tarde de chuva, o cliente solitário da gelataria salta porta fora para abrigar a rapariga que viu passar sem guarda-chuva, dois corredores vão cruzando na avenida todas as manhãs até que se encontram ao balcão para tomar café depois de correr, um cliente deixa cair a sua bola de gelado sobre os sapatos novos em folha da cliente de trás, o que dá origem a uma enorme confusão, seguida de uma conversa sobre temas mais interessantes. Já não falta muito para o meu cérebro sucumbir ao temperamento reservado e fechado do velho continente e voltar a considerar tudo isto irrealista e improvável, mas sei que pelo menos quando entrar na gelataria vou estar num filme americano, onde somos todos otimistas, faladores, felizes e abertos a todas as possibilidades do mundo.




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