Ano novo, David Lynch


Porto, 10 de janeiro de 2025


        Ele tem os olhos muito azuis, reluzentes e translúcidos, que se fundem numa mancha com a água que sai do torniquete, que o salvou de um devastador incêndio uns anos antes. Já não vê como antigamente, e por isso não tem carta de condução. O irmão, doente, vive no Wisconsin, a 317 milhas dali, e não tem quem o leve lá. O azul claro dos seus olhos turva a imagem de tudo, incluindo a dos seus sonhos, como o de rever o irmão, a tantos Estados de distância. Olha para as estrelas, estiraçadas numa húmida linha reta infinita, cada vez mais pequena, mais focada, até se converter num ponto só, seca a água por ação da luz, e ganha coragem para partir.

A única forma que tem de se deslocar é em cima de um cortador de relva, pelo que decide ir assim. Os amigos avisam – “nessa coisa vais ser empurrado para a berma da estrada!.”, mas não se importa. Lá vai: o cortador vai avançando vagarosamente sobre a risca amarela, infinitamente comprida do alcatrão sem fim, e quando uma carripana passa, e o empurra para fora da estrada, limita-se a apanhar o chapéu que voou, e volta para atrás. Ouve os amigos de novo - “eu bem te avisei”, como se alguma vez tivesse o aviso toldado os seus olhos azuis. Compra um cortador mais forte (John Deere), e quando uma nova carrinha lhe passa ao lado, no mesmo lugar onde abandonara a estrada pela última vez, encolhe-se, semicerra os olhos, e sorri vitoriosamente, porque “desta vez correu bem” (o que não quer dizer que lá chegue). 

Continua, devagar. Encontra viajantes perdidos, com quem conversa, e faz ver a cada um o valor da família que ele tanto procura. Encontra um abrigo, no momento exato em que os relâmpagos o ameaçam e, abrigado, sorri com gratidão. É ultrapassado na estrada por uma maratona de ciclistas, a larga velocidade, e diz-lhes adeus, apreciando o colorido espetáculo da sua passagem. Perde o controlo dos travões, quase é apanhado por um incêndio - o seu pior medo - empalidece, mas é ajudado, e finalmente, mais de um mês depois, chega a casa do irmão.

O irmão, com quem estava zangado e não falava há anos, aponta para o cortador e pergunta - fizeste tanto caminho em cima daquela coisa só para me ver? E não pode deixar de sorrir. Talvez alguns sonhos só se cumpram vagarosa e teimosamente em cima de um cortador de relva. Neste princípio de ano, proponho um brinde a todos os lentos cortadores de relva, que consigam percorrer com alegria a longa estrada que agora começa.

(A história é a do filme “straight story” de David Lynch, a quem o cinema Trindade dedica este ano um programa especial).









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