UMA ESCRIVANINHA SÓ SUA

Cambridge, Reino Unido, outubro de 1928

Em Outubro de 1928, Virginia Woolf foi convidada a dar uma aula às alunas de Newnham College (a minha College em Cambridge), discurso esse que foi posteriormente publicado no livro A Room of One’s Own (um quarto só seu). Nos primeiros capítulos, a autora conta como decidiu caminhar pela relva, acompanhando sempre a linha do rio Cam, até descobrir um lugar onde se sentar. Todos os terrenos, assim como toda a relva até à mais pequena folhinha antes de atingir a superfície de água, são propriedade de Colleges: St. Catharine’s College, King’s College, St. John’s College, e assim sucessivamente. Virginia Woolf, portanto, estava sentada em terreno alheio. Para se poder sentar na relva, teria de estar inscrita na College a quem pertencia a relva, o que seria, na altura, uma impossibilidade.

    Com exceção de Newnham e Girton, as mulheres não eram admitidas em Colleges. Newnham College foi fundada em 1871. Era então uma pequena casa arrendada por Henry Sidgwick, onde cerca de cinco alunas estudavam aquilo a que se chamava “Lectures for Ladies”, que como o nome indica não tinham a qualidade dos cursos oferecidos pelos Colleges detentores da relva. Era-lhes vedada a frequência das restantes bibliotecas de Cambridge, daí que Newnham, que teve de adquirir para si os livros que existiam dispersos pelos vários departamentos da cidade, seja ainda hoje a College com a biblioteca mais completa. Pior ainda, apesar de concluírem com sucesso os cursos oferecidos por Newnham e Girton, que com o tempo se foram tornando sucessivamente melhores e equivalentes aos cursos dos outros Colleges, as alunas não integravam oficialmente a Universidade. Como Cambridge não lhes conferia um diploma válido, as assinaturas do College Roll, um rolinho oficial que ainda hoje assinamos na Matriculation, eram a única forma de provar que tinham lá estudado. Várias foram as petições para a Universidade atribuir oficialmente diplomas às mulheres, em 1881, em 1897, etc., mas todas elas foram recusadas. 

    Apesar da falta de reconhecimento, foram saindo de Newnham College mulheres extremamente bem preparadas e úteis ao país. Durante a primeira guerra, eram 600 as alumnae de Newnham que desempenhavam cargos na linha da frente da ajuda e assistência, como médicas, enfermeiras e intérpretes. Tendo em conta a sua importância, seria de esperar que a Universidade mudasse de ideias e reconhecesse os diplomas de Newnham, mas apesar disso, em 1921, foi recusado por Cambridge um novo pedido de reconhecimento. Entretanto, Rosalind Franklin, formada em ciências por Newnham, descobriu a dupla hélice do ADN (apesar de Watson, Crick e Wilkins terem ficado com os louros, e ganho o prémio Nobel), mas nada mudou. Newnham teria de esperar por 1964 para a sua aluna, Dorothy Hodgkin, receber o Prémio Nobel da Química (a única mulher inglesa até hoje a ter ganho um prémio Nobel de ciências). 

    Só em 1948 é que Cambridge passou a reconhecer os diplomas atribuídos por Colleges para mulheres, como Newnham, e só em 1970, já depois de os nossos pais nascerem, é que as restantes Colleges começaram a admitir mulheres.

    Tudo isto para regressar ao início. Em 1928, Virginia Woolf estava longe de ter o direito de descansar no terreno ao pé do rio. Conta que, lá sentada, lhe surgiu uma ideia extraordinária. Porém, mal abriu o seu bloco de notas para a apontar, foi interrompida por um Porter que a repreendeu por estar lá. No longo caminho até casa, esqueceu a ideia, e aquela única conjugação melodiosa de palavras, naturalmente, nunca mais voltou. O episódio inspirou a sua célebre frase “uma mulher precisa de dinheiro e de um quarto só seu, para poder escrever ficção.” 

Concord, Massachussets, junho de 1868

    Do outro lado do mundo, Louisa May Alcott teve a sorte de ter um quarto só seu.  Louisa May Alcott é a autora das Mulherzinhas, um livro que fez parte da minha infância (e da de tantas outras pessoas), e que me lembro de ver pousado na minha mesinha de cabeceira: a história de quatro irmãs, e dos seus talentos, desastres, ambições e desejos. Jo (que era a Louisa) queria ser uma escritora famosa, e passava o dia e a noite a rabiscar. Amy também queria ser reconhecida, mas dedicava-se à pintura. Meg sonhava ser mãe, e Beth em ajudar os outros e tocar piano. No livro, a casa parece viva, alegre, cheia de bolos, teatros, histórias e música, sem problemas, sem responsabilidades e, sobretudo, sem adultos. Por gostar tanto do livro, fiquei feliz por saber que a casa de Louisa May Alcott fica em Concord, a vinte minutos de Cambridge, Massachussets, e organizei uma visita. 

    No fim do outono, as árvores ainda mantêm vivas as suas cores numa paleta intensa de tonalidades, do vermelho mais escuro ao amarelo claro. No sopé da colina de Walden Pond, na margem do rio Concord, quase conseguimos ouvir Emerson, Thoreau e Bronson Alcott (pai de Louisa) a mergulhar, depois de longas conversas metafísicas. Concord era o epicentro literário na América pré-guerra civil, e os três amigos eram grandes filósofos transcendentalistas. Thoreau escrevia poesia e prosa, e no seu tempo livre liderava bandos de crianças locais pelos bosques, ensinando-lhes os nomes dos pássaros e das árvores, que conhecia como ninguém. Outras vezes convidava grupos de crianças para o seu barco e lá iam todos em excursão. Entre essas crianças, estava Louisa May Alcott, que não andou na escola, e que foi ensinada em casa pelo pai, com quem lia Dickens, por Emerson que lhe apresentou Goethe na sua biblioteca, e entre passeios com Thoreau. Veio mais tarde a queixar-se amargamente de que o seu estilo era apreciado por ser simples, mas que não conseguia exprimir-se melhor nem mais profundamente por nunca ter tido uma educação formal.

    Bronson era um pedagogo de ideias modernas, e gostava muito das filhas. Como reparou que Louisa adorava ler, olhar para dentro dos livros, rabiscar nas margens das folhas, arrancar livros das estantes e fazer pilhas com eles, deu-lhe um quarto e uma escrivaninha própria, o que era raro na altura oferecer a uma filha. A Amy, que na vida real também gostava de pintar, permitiu que desenhasse nas paredes de todos os quartos da casa, que ainda se mantém cheios de pinturas. Quando Louisa esteve doente, May desenhou-lhe flores em todas as paredes, porque não lhe podia trazer flores todos os dias.

    Mas se Louisa tinha um quarto, primeiro passo da equação de Virginia Woolf, faltava o resto, e todo o ilídico cenário de domesticidade de que nos fala o livro, esconde alguma pobreza e dificuldade, que na verdade existiram. Como Bronson se recusava a fazer trabalhos menos intelectuais, muitas vezes não havia comida em casa e as dívidas acumulavam-se. 

    Louisa May Alcott era um exemplo de virtude, com um grande espírito missionário e uma vontade enorme de servir. Em casa, ajudava em tudo o que fosse preciso, e nos intervalos escrevia peças de teatro e colunas de jornal, que lhe rendiam alguns trocos, não muitos, que não era suposto uma mulher escrever, e o preço das peças correspondia ao valor que lhe decidiam dar. Como a família precisava mais de um ganha pão do que alguém que ajudasse nas tarefas domésticas, foi para Boston à procura de trabalho. Foi costureira numa escola, dez horas por dia, e depois também professora, mas como detestava dar aulas, desejava profundamente escrever tão bem que não precisasse de voltar a ensinar. Escrevia nos intervalos, nos poucos que tinha, entre costuras e lições, e quando finalmente tinha oportunidade de escrever por uns dias, fechava-se no quarto em modo vortex (como lhe chamava), e escrevia com toda a alma e coração, até acabar. Foi a necessidade de ganhar dinheiro que a levou a publicar o seu primeiro livro, Flower Fables, com o qual – apesar de tudo – recebeu uma muito modesta quantia (cerca de trinta dólares), apesar de terem sido vendidas cerca de mil e seiscentas cópias do livro. Numa carta à irmã, Louisa escreveu: “o poeta escreve que a vida é uma luta, um sonho, e que é também ‘uma bolha’, pelo que nesse caso me sentiria grata se um anjinho de espírito desportista pudesse rebentar essa bolha com a sua alegria infantil, e que a magnânime empresa de bolhas de sabão pudesse fazer-me outra, com propriedades mais calmantes, um bocado menos de água salgada, e menos vazia, mais brilhante, com menos tendência para escorregar”. Mas nesse mesmo ano, as irmãs escrevem que a vinda de Louisa para o Natal trouxe notícias, alegria e muitas gargalhadas, e que os manteve a todos entretidos. Apesar de estar em Boston, era a primeira a chegar quando precisavam dela, e tomou incessantemente conta da mãe quando adoeceu.

    Quando começaram a recrutar para a guerra, Louisa esteve permanentemente a costurar, mais de quinhentas camisas azuis para as fardas dos soldados, e mais tarde dedicou todo o seu tempo livre a estudar manuais de medicina e a aprender como curar feridas de balas, para poder ser escolhida como enfermeira. Acabou por ir para um dos sítios mais perigosos, em Washington, mas foi com determinação que encarou o desafio, maternal e lutadora. Pneumonia, febre tifóide, difteria, amputações, nunca parou, e foi imediatamente posta a supervisionar quarenta camas. A tarefa que achava mais difícil era a de responder a cartas recebidas por homens que não tinham sobrevivido a tempo de as ler; e quando conseguia, lia Dickens aos soldados. Trabalhou até à exaustão, suportou sempre todas as tarefas sem se queixar, e mesmo doente ainda conseguiu salvar três homens às portas da morte, mas acabou por ser diagnosticada com febre tifóide, e levada para casa. O tratamento na altura consistia na administração de mercúrio, o que lhe provocaria cansaço, dores de cabeça e dores nas pernas até ao fim da vida.

    Mas Louisa, de quem dependia a família, não podia parar. Depois de muito escrever, e de muito publicar (às vezes, muitas vezes, anónima), foi convidada como editora de uma revista para crianças. A escrita das Mulherzinhas foi muitíssimo dura para Louisa, que diz que só com muito rigor e muito esforço conseguiu trabalhar horas a fio, para finalmente entregar o livro a que se tinha comprometido, sob pressão do editor e do próprio pai. O livro começou por não ter sucesso porque o editor não se identificou com um livro destinado a um público feminino, e só quando a sobrinha do editor lhe “roubou” as cópias e ficou entusiasmadíssima a seguir os capítulos que iam saindo, é que o editor entendeu que o livro podia ter sucesso. Tendo-lhe dado sinal verde para continuar, Louisa escreveu 402 páginas entre o dia 1 de junho e o dia 15 de julho. O livro vendeu como poucos, e contam que quando, não tendo tido mais notícias sobre o manuscrito, Louisa se dirigiu à editora, o editor, sem mãos a medir com a quantidade de caixas e caixas que geria, disse-lhe sem se virar – go away! O país ficou em êxtase com a obra. O livro vendeu, em dias, duas mil cópias, e no fim do ano já tinha vendido mais quarenta e cinco mil cópias. As fãs apareciam-lhe à porta, num fenómeno, dizem as donas do museu, mais impressionante do que a J. K. Rowling. Com o dinheiro, fez grandes reparações em casa, e ofereceu à irmã o curso de pintura em Paris.

    Louisa May Alcott teria sido sempre uma irmã e filha extraordinária – é uma questão de caráter - mas tenho pena de que tenha tido um sucesso tão difícil e tão duro, e pergunto-me que livros extraordinários teria eu tido na minha mesinha de cabeceira se Louisa pudesse ter estudado mais e se, por ser reconhecida devidamente, tivesse tido mais tempo e oportunidade para escrever com calma, e liberdade para escolher os temas que queria. Aliás, talvez seja mais correto perguntar que livros teria agora na minha mesinha de cabeceira, e não que livros teria tido em criança, porque a escrita de Louisa, se tivesse podido estudar, talvez tivesse sido mais parecida com a de Emerson, de Bronson e de Thoreau, do que com a de uma autora de livros infantis, por muito que goste das Mulherzinhas.

Concord, Massachussets, novembro de 2024

    Se hoje escrevo do outro lado do mundo é porque Newnham College ainda existe, e ao investir fortemente na educação das mulheres, é pródiga em bolsas e oportunidades, sendo conhecida por ser o College com quartos de maiores dimensões, com mais luz, e com os jardins mais bem tratados. Virginia Woolf tem razão, e embora eu esteja a perder a tempo a escrever neste blog em vez de escrever mais umas linhas na tese de doutoramento, sei que teria um dia pena de não ter registado estas memórias. Dedico-as a Virginia Woolf, a Louisa May Alcott, e a muitas outras que lutaram para que eu pudesse ter o meu quarto, e a minha bolsa, e à minha família, a quem nunca ocorreria uma College para mulheres porque simplesmente nunca pressupôs uma realidade em que essa College fosse necessária. Somos o que esperam de nós, e Bronson esperava alguma coisa da escrivaninha que ofereceu. Escrevo também porque os direitos que temos não estão tão garantidos como achamos que estão, porque todas estas conquistas são recentes, e porque quem não tem memória perde a noção do risco e de outra realidade, e nessa medida a capacidade de valorizar o que tem.

    P.S.: Não inventei nada. A vida de Louisa May Alcott é descrita no livro de Matteson, que comprei à saída da casa de Louisa, em Concord, sobre a história de Bronson Alcott, porque achei interessante o facto de o pai e a filha fazerem anos no mesmo dia (26 de novembro), como eu e a mãe (8 de novembro). 
















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