S'adapter ou disparaître

Cambridge, Massachussets, 2024

Costuma-se dizer, “s'adapter ou disparaître.” 

Deixámos para trás os que, sentados na areia de Crane Beach, num dia de verão magnífico, muito adequadamente discutiam em que cadeiras do LLM se iam inscrever. Eu e a minha amiga Aine decidimos que era tempo de arregaçar as baínhas das calças, medir a temperatura do mar, ver se eram diferentes as conchas americanas e conversar ao longo da linha da água (que fica mesmo, mesmo em frente a Portugal). A Aine é japonesa, e tal como todos os japoneses que conheço, é extremamente educada, gentil e atenciosa, mas tem um lado americano muito forte, por ter vivido em Washington muitos anos: entusiasma-se, salta de alegria, e fala muito alto. Foi nesta excitação, com montes de conchas nas mãos, que passou por nós uma mulher ruiva, exótica, com os olhos muito redondos e muito grandes, com um ar tão divertido quanto inteligente, e que nos perguntou se queríamos uma fotografia, enquanto segurava numa superfície concava, com umas letras gravadas, que eu supus serem as suas iniciais, e da qual saia um líquido com um pozinho esverdeado que consumia através de uma palhinha. Não me lembro se a fotografia chegou a ser tirada, porque a atenção de ambas recaiu em cheio sobre esta mulher fascinante e sobre a sua bebida, que nos apressámos a decifrar. Ficamos a saber que a mulher era argentina, que a bebida era uma infusão da planta erva-mate, bebida típica do povo Guarani, que tinha vindo para Boston fazer o doutoramento, que conheceu cá o marido, e que vivem com as duas filhas ao lado de Harvard Square. Harvard Square é a parte mais bonita de Harvard, onde foi filmado o Love Story e onde Jen e Oliver se atiram para o pátio coberto de neve e deixam os desenhos de anjos cravados no chão, ao som da música do Andy Williams que torna tudo maravilhoso.

Por todas estas razões, a senhora transformou-se instantaneamente num ídolo e achei, achámos, que nunca iríamos encontrar alguém que nos pudesse dar recomendações tão boas sobre Harvard. Disparámos em perguntas. A senhora argentina sorria com um ar divertidíssimo – eu imagino que o nosso fascínio por ela devesse ser óbvio. Disse-nos que o melhor café para ir se chama Faro, e olhou para mim: se calhar os donos até são portugueses.

Não demorei muito a ir espreitar o café Faro, que depressa se tornou o meu café preferido. O café é realmente extraordinário, com plantas a crescer em vasos em todas as direções. Os empregados são brasileiros, e ainda não consegui saber nada sobre os donos. No café não há pressa. A fila é grande porque os dois empregados conversam com quem se lhes dirige como se estivessem a falar com velhos amigos que lhes merecem toda a atenção. Hoje, um senhor esperava pelo seu café, de livro na mão (così è (se vi pare), de Pirandello), e enquanto lhes explicava a falta que lhe faz Itália, um dos empregados parou de fazer o café e ficou com a caneca suspensa no ar para o ouvir melhor. No ar ecoam gargalhadas e bossa nova. Quem quiser pode trocar o disco de vinil que está a girar, porque o gira-discos e os vinis estão à disposição, mas quem se atrever a abrir um computador dentro do café ouve uma reprimenda. Os ipads só são permitidos se forem usados para desenhar, regra de que beneficia uma rapariga que conheci, e que faz do café escritório, no seu projeto de ilustração de casamentos. As mesas são de grupo e corridas, e alternam-se os grupos de amigos que já se conhecem com as pessoas que levam livros ou ipads para desenhar, e que muitas vezes acabam a conversar. Como há mais pessoas que mesas, há quem se sente no chão, e há cães, muitos cães. 

Acho que já dá para se ter uma ideia do ambiente. Ao meu lado, alguém lia um livro de Thoreau, chamado Walden, e eu, colecionadora profissional dos títulos dos livros dos outros, espreitei a contracapa e apercebi-me de que era passado em Walden Pond, Massachussets, aqui ao lado, e que fala dos dias que o autor viveu isolado na natureza. Só ele e a natureza. Por um lado, devia ir lá a Walden Pond, por outro lado, só posso ir lá se ler o livro, e eu que gosto de livros...  acho que este deve ser uma tremenda seca. Ponderava, e bebia o meu Cappuccino, devia ler, devia ir. Era esse o mood, e o meu maior problema. Nisto entra um espanhol – acho que era espanhol, ou lisboeta, mas voto espanhol. Calças beges, camisa azul, sapatos de vela, de café expresso na mão. Impacientemente procura um lugar, e como está a uma velocidade de pensamento muito mais rápida do que todos os outros, parece-lhe que tem menos tempo do que tem na verdade para encontrar um lugar sem que alguém repare que parece perdido. Precipita-se para um lugar vazio entre uma rapariga que desenha, e outro que lê um livro de poemas. Não olha para os desenhos, nem para os poemas. Senta-se com uma mão sobre a outra, e troca-as de posição. Não trouxe um livro, nem um moleskine, nem pode usar o telemóvel, por isso fica com os olhos parados na parede branca, antes de voltar a arregaçar as mangas e trocar as mãos de posição. O cenário era tão aflitivo, que comecei a ficar desesperada por ele, e esqueci-me do Walden, até que o homem se levanta da cadeira de um salto, e cumprimenta de passou bem um senhor de fato e gravata. Estava à espera de alguém para uma reunião de trabalho, o que explica tudo, mas continua a ser estranho. Quem é que tem a ideia de marcar uma reunião de trabalho no café mais hippie de Cambridge? 

Se o Woody Allen estivesse aqui, ia até à mesa, viamo-lo a atirar o café ao lixo, num fiozinho que de repente se tornava muito comprido, enquanto dizia: aqui não se pode ter reuniões de trabalho, goodbye. Ou então, como no filme Zelig, em que a personagem principal se adapta fisicamente ao contexto em que está, víamos o senhor mais velho a adquirir rapidamente um chapéu de veludo com uma pena colorida, e o espanhol uma tote bag e umas botas pretas. Mas esta cena não é do Woody Allen. Se calhar, é mais uma cena à Mary Poppins, tanto que me apetecia estalar os dedos e fazê-los desaparecer, ou convertê-los em hippies.                                        

S'adapter ou disparaître.....

     
 



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