O roteiro dos bolinhos de Rúben A.

 

O roteiro dos bolinhos de Rúben A. 

                                                            

Algumas das mais ternas memórias de Ruben A. foram passadas com a avó no interior de um Daimler em direção a diferentes terras do país. Excursões, dizia, em que aprendeu a olhar, e das quais trazia sempre bolos regionais das pastelarias das Praças da República de muitas vilas do Norte. Este verão, convenci a minha mãe e a avó a virem comigo procurar todos estes doces de que fala Ruben A., e a quem muito agradeço terem-me trancado no carro a ouvir histórias que de outra forma se não proporcionariam e que iam surgindo a propósito da casa X e Y onde a mãe tinha estado, onde morava um primo, ou onde a avó passava férias, ou que surgiam simplesmente porque se via qualquer coisa bonita, ou porque a cidade tinha um certo Santo, tradição ou festa, que por sua vez evocavam memórias e permitiam certas ligações, relatadas em pormenor, entre longas estradas que nem estranhos nem outros compromissos interrompiam.

O roteiro não correu de forma exemplar porque os tempos mudaram e porque em cada terra se produzem também bolos de outras terras próximas, além de ter sido a descrição de Ruben A. feita de memória, naturalmente mais concentrado na beleza das paisagens que via e nos momentos passados com a avó, do que no relatar científico da proveniência de cada bolo. Ainda assim, valeu a pena! Dizia Ruben A.:

Em Santo Tirso comia-se o célebre pão-de-ló da confeitaria Moura, especializada também, talvez já prevendo a futura proximidade do colégio de Santo Inácio de Loyola, nos deliciosos, e talvez unicamente saborosos nessa ocasião, jesuítas”.

                                                  

Nunca lá tinha ido, apesar de me ser familiar a caixa com letras azuis, e um homenzinho de barrete, e saber de cor, sem precisar de ler a explicação que surge em baixo desse homenzinho, que a Confeitaria Moura se dedica ao “fabrico esmerado de toda a qualidade de doce; especializada em jesuítas e limonetes”. 
                                                                                   
    
Fiquei a saber que os meus avós paternos tinham estado na Moura no dia em que nasci, e que me conheceram de “bolos na mão”, o que só comprova a minha ligação aos jesuítas, de casca caramelizada, deliciosa e tão crocante que estala a trincar. Por ser a melhor parte do bolo, não sei porque nunca, em criança, me servia só da casca, e deixava a base. Será porque a base é húmida e leve e não é nunca um esforço acrescentá-la ao estômago, será porque a base, destapada, apresenta uns buraquinhos tão inestéticos que incomodam a visão, será porque sou demasiado gulosa, não sei. 


Mas a verdadeira novidade foi o pão-de-ló. A fama dos jesuítas e dos limonetes oculta a primordial obra-prima, a mais bela descoberta que fiz nos tempos modernos – o pão-de-ló da Moura! Não há palavras para descrever o bolinho: é seco, porque não tem creme de ovos, tem a consistência de um bolo firme, mas depois o nosso paladar apercebe-se que o bolo é molhado. É a mais saborosa contradição de sempre, que aconselho a experimentar. 


A Moura ainda está como Rúben A. a deixou. Ao meu lado, um senhor melancólico sentou-se sem nada pedir, de olhar fixo no horizonte, enquanto dizia – sabe, menina, há quantos anos cá venho?; há sessenta anos, o que supus ser a vida toda. Talvez se tenha cruzado com Rúben A., ele, ou as senhoras que lá tomavam chá com os maridos ou outras amigas, possuindo o lugar como se lhe pertencessem, e o tempo como se ele nunca fosse acabar, o que me revelou que aquele era um programa habitual. 


E os empregados aflitos –imagino-os já aflitos no tempo de Rúben A. - , sem mãos a medir, entre as pessoas que comem bolos nas mesas, mais as pessoas em filas para encomendar caixinhas de bolos, mais as caixinhas de bolos para as pessoas que acabaram de comer bolos nas mesas, porque ninguém sai dali de mãos a abanar: se tiverem, como eu, provado um jesuíta, mais um limonete, mais um pão-de-ló, segue-se uma avó que pede mais seis jesuítas para levar.

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“Em Ovar, a vila mais incaracterística que conheço, comprávamos o famoso pão-de-ló com camadas de ovos-moles na parte tostada. Minha avó era bem larga nestas questões de comida, e um fartar vilanagem estampava o misto de não poder comer mais que se apoderava de nós ao fim de pouco tempo”. (Rúben A.) 

Eu e Rúben A. gostamos muito das nossas avós, e ambas parecem bem divertidas e generosas, se bem que a minha é de Ovar, e não deve gostar muito desta descrição. Se se mantivesse verdadeira, Rúben A. hoje rejubilaria, e acrescentaria apenas “ainda bem”. Mas ao não ter sido alvo de grandes empreendimentos urbanos nem investimentos turísticos, Ovar mantém-se bem preservada, sucedendo-se agora as casas palacianas e as casas pequenas de azulejos magníficos, sem esquizofrenias estéticas, numa agradável monotonia que é de louvar, e que já raramente se encontra: uma característica-incaracterística. Foi aqui que conheci a escola da avó, a janela de casa dos avós da avó, onde a avó via o Carnaval e as procissões, e que fica em frente à loja de pão-de-ló. O letreiro ainda é antigo, e a receita do pão-de-ló da Celeste já se encontra na família da dona da loja há cinco gerações: “Pão-de-ló Celeste d’Ovar. Legítimo. Celestise o seu estômago. Celeste Gomes Pinto, Irmãs, Ovar”. Por isso também em Ovar tive a mesma experiência que Rúben A., de um doce – qual pão!? - com camadas de ovos-moles à volta e em cada perfuração da parte tostada. Agora são mais chiques, porque são vendidos em caixas pequenas, quadradas, e perfeitas para oferecer. 

Mas neste caso a caixa era para mim, e o meu “fartar vilanagem” não se coibiu perante uma caixa bonita, pelo que colher a colher me fui deliciando com o meu tipo de pão-de-ló preferido, o molhado, viciante e fresco, enquanto me mostravam as outras especialidades da loja, os azulejos de massapão (argh), lindíssimos para oferecer a amigos, a turistas ou a convidados. São ainda famosas as Marias d’Ovar (também há Maneis), com amêndoa e feijão! 

“De Valongo trazíamos a célebre regueifa que ao pequeno-almoço do dia seguinte se transformava em torradas de estalo”. (Rúben A.) Caí na asneira de chegar à padaria Tradicional a um sábado de tarde. Tivesse eu chegado a um domingo, e seria o dia da regueifa, o dia em que na Padaria Tradicional se amassam quatrocentos quilos de farinha, que são seiscentos quilos de regueifa. Mas era sábado, e não havia regueifa. Fiquei tão triste que me ofereceram um pequeno molde da regueifa para me mostrar como é, um trancelim dourado feito com duas tiras de massa que enrolam uma na outra. É espantoso que me tenham oferecido um molde, e que numa cidade já famosa pelas regueifas, com museu e tudo, e num dia estafante de sol, tenham perdido tempo a pensar que eu podia nunca ter visto uma regueifa, e que ficaria muito feliz por levar uma representação do que não havia. 

                                                

Em geral diz-se que quem dá o que tem, a mais não é obrigado, e fica-se por aí, assunto arrumado. Mas em Valongo quem não tem, pensa no que poderia dar para substituir o que não tem, e em como compensar a perda pela qual se não tem responsabilidade nenhuma, e foi assim que abandonei a padaria Tradicional feliz, com um pequenino molde, e as bolachas, também típicas, de Valongo.

“De Amarante, onde era mais raro irmos, misturávamos o olhar para aquelas velharias da praça onde só mais tarde vim a descobrir a Pietá mais bonita da nossa estatutária, ali em plena esquina da ponte -, de lá trazíamos as lérias e os foguetes”. Também para mim é raro ir a Amarante. Deixámos o carro abrigado do sol num parque de estacionamento com vides pelo meio, e daí percorremos a pé os caminhos que de tão bem preservados que estão, serão seguramente os mesmos que Rúben A. trilhou. Terrenos baldios, casas senhoriais antigas, e ruiinhas de comércio tradicional, onde ainda se carregam cestos à mão de uma porta à outra, até chegar à famosa Confeitaria da Ponte. 

 

A luz entrava escancarada pela sacada, e com sorte lá arranjámos uma mesa, de onde aproveitamos a vista do rio Tâmega e do Convento de São Gonçalo, e sobre a qual se pousaram mais doces do que os permitidos por Rúben A. Mais precisamente: um papo d’anjo, um barquinho, uma léria e um foguete.

                         

Não fiquei muito entusiasmada com a léria. É feita de amêndoa e massapão, e sabe um bocadinho a broa. O meu encanto foi o foguete, que tem o sabor de um papo d’anjo, mas que não nos deixa a sensação de comer uma gema líquida, e é mais substancial. Por isso come-se um foguete e fica-se satisfeitíssimo, sem necessidade de continuar a pecar, como me acontece invariavelmente com os papos d’anjo, em que nunca me fico por um. Na foto da esquerda podem ver-me acompanhada por um foguete, e na direita por uma léria. Finalmente, um papo d’anjo e um barquinho, que dispensam apresentação. 

E do outro lado do rio, já cheia de doces, obrigada também a Rúben A., por me ter dirigido o olhar para a Pietá de Amarante, que é realmente uma maravilha.

    “De Vila de Conde os afamados beijinhos e eu bebia lá uma laranjada sem picos, feita com açúcar melado e de que nunca mais a memória me privou”. Vila de Conde conhecemos bem, e assim de cabeça não nos conseguimos lembrar onde seria possível arranjar beijinhos de freira. É claro que os beijinhos eram originalmente produzidos no Mosteiro de Santa Clara, e são amplissimamente anunciados no Portal do Turismo da Vila como um produto da terra, mas ninguém nos diz onde os arranjar, e depois de uma ou duas paragens, e com alguma pressa que havia, acabei por os ir buscar ao Pingo Doce. Acho piada a bater com o dente numa esfera oca, e até gosto bastante do açúcar cristalizado, é uma espécie de profiterole menos sofisticado que apesar de apreciar, não posso dizer que me deleite. Já a Ginja....

“Não gostava tanto do pão-de-ló das Felgueiras, tão em relevo quando da Páscoa para se banhar em vinho do Porto. Era seco, mastigava-se para cima e para baixo e custava a engolir”. Eis uma visita que vale a pena! De todas as visitas, esta foi a reprodução mais fiel da versão de Rúben A. Primeiro, porque a fábrica do pão de ló de Margaride fica mesmo ao lado da Praça da República, e Rúben A. dizia – lembram-se? – que trazia sempre bolos regionais das pastelarias das Praças da República de todas as vilas do Norte. Segundo, porque a decoração da casa e os próprios instrumentos de cozinha como a balança, nunca viram os tempos modernos, o que torna a casa absolutamente extraordinária e uma raridade. O desenho feito nas paredes de mármore, do qual consta Leonor Rosa da Silva como fornecedora da Casa Real, já existia necessariamente quando Rúben A. (nascido em 1920) lá foi com a avó, com as tintas mais vivas nessa altura do que agora, e ainda mais vivas quando a avó de Rúben A. lá ia em nova. Este desenho está por lá pelo menos desde 1888, quando foi atribuída à casa a designação de Fornecedora da Casa Real Portuguesa, e a fábrica de pão de ló passou a ostentar à entrada as armas dos Duques de Bragança. Em terceiro lugar, porque o pão de ló de Margaride está registado e não mudou, o que se comprova porque a Rúben A. o bolo custava a engolir. A mim faz-me soluços, de tão seco que é, e dizendo isto a minha mãe ripostou que disparate!, mas teve de evitar vários soluços uns segundos depois ao provar o bolo. Fartamo-nos de rir. O pão de ló foi embrulhado à nossa frente, com um papel de letras azuis maravilhoso que conta a história da casa, e forrado por fora com um papel tradicional castanho claro e as respetivas armas. Trouxemos também as Bolachas de Manteiga, que são as bolachas mais leves que alguma vez provei, de textura macia e que se derretem na boca, com a percentagem mais-que-perfeita de doçura.





Para verem bem como não estou a exagerar, fotografei a caixa, que tem um azul maravilhoso e um estampado brilhante e dourado, que é das caixas mais bonitas que já vi, e que ainda assim, não vale tanto como o conteúdo. Mas tive pena de ver a casa vazia. Quero acreditar que é porque é agosto, mas gosto de imaginar aquelas grandes escadas cheias de pessoas em fila, nas épocas de festa, e as conversas que se começariam lá. Espero que ninguém se lembre que é mais produtivo encomendar os pães de ló por uber eats ou on-line, mas como mais vale prevenir do que remediar, se calhar é melhor ir lá mais vezes e recomendar a casa aos amigos turistas.


“Esquecia-me dos deliciosos bolos de Paços de Brandão, as gemas, os areados, as roscas doces, as clarinhas.”  Nunca tinha ido a Paços de Brandão, e achei piada que as ruas se designam por números – Rua dois, rua três – como se estivéssemos em Nova Iorque ou nos Arrondissements de Paris. Disseram-me que os bolos eram produzidos em Santa Maria da Feira, e lá fomos nós, em plena feira medieval, e logo à procura não de um, mais de quatro bolinhos. Começámos na Confeitaria Castelo, onde foram extremamente gentis e me mostraram uma fornada de areados, uma bolacha pequena polvilhada de açúcar. 

Apreciei-a muito, mas ainda estava em missão, e fui de banquinha em banquinha à procura dos três bolos que me faltavam. Alguns diziam-me que não tinham e perguntavam-me, ironicamente, se já tinha ido a Fão, que depois vim a perceber ser a terra das Clarinhas. Com persistência e alguma sorte acabei por chegar à banca da Gula dos Anjos, onde fui muito gentilmente atendida, e se dedicaram comigo a esta aventura. 

Venderam-me um belo doce de gema, uma bolacha sólida redondinha coberta de açúcar de confeiteiro, às riscas, muito leve, tão leve que me lembro apenas de gostar do sabor, mas não consigo provar se o comi ou não, tal e qual como nunca nos lembramos se fechamos a porta à chave. Ficaram com pena de não ter os outros dois doces que faltavam, mas que realmente não são de Santa Maria da Feira. Fiquei, ainda assim, a ganhar, porque me ofereceram uma fogaça e um caladinho, estes sim verdadeiramente típicos da terra, que me souberam lindamente à hora do lanche, e ainda me contaram histórias de Santa Maria e dos seus bolos. Que, por exemplo, a fogaça surgiu como um voto, um presente oferecido a São Sebastião em troca de proteção contra a peste que a população enfrentava, e que esse voto se renova todos os anos, em 20 de janeiro, na Festa da Fogaceira. Ao caladinho há quem chame um “bolinho de chá”, porque – tal como o doce de gema – tem um interior denso, e um formato ligeiramente superior ao de uma bolacha, o que o desclassifica como bolacha, mas também não se pode chamar um bolo. Sobre os caladinhos há muitas histórias, parecendo unânime a versão de que o trocadilho “caladinho” era empregado nos cafés em que se vendiam os ditos, nos tempos de Salazar, para anunciar a presença da polícia, sem que esta se apercebesse do sentido da palavra acabada de usar.




Aqui estão: o caladinho, em baixo à esquerda, e a fogaça, à direita.



E conclui Rúben A.: “Ficava assim, aos poucos, com um conhecimento catedrático da gastronomia doceira da parte mais importante do país. Entre a liberdade de olhar para a paisagem, através das janelas palacianas do Daimler, e o comer de arrufadas, eu ia criando um gosto muito íntimo por uma espécie de paisagem e por uma espécie de comida que sempre teriam influência na minha maneira de ser”. Quem conseguir dizer melhor, diga.









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