Dez para as três
Foi assim por entendimento entre os dois Santos, e não por minha livre vontade, que permaneci em Cambridge no dia 23 de junho de 2024. Foi talvez o dia mais quente de verão de que me lembro em Inglaterra. O coro de King’s College entoava a tradicional serenata com uma multidão a assistir, novos e velhos, e até as vacas, ao longe, a olhar, tudo em harmonia perfeita: os diferentes tons de vozes, os raios de sol refletidos no suave ondulado do rio, os punts que não pararam de trabalhar e que pareciam dançar melodiosamente à volta do coro. Naquele momento de plena tranquilidade, tive a consciência de que aquela hora, no Porto, já se começava a lançar balões, e imaginei o cheirinho a sardinhas, o angustiante sentimento de responsabilidade pela dobrinha do balão que escolhemos no momento em que esta nos ameaça escapar, sugada para o interior da esfera quente, a sensação na mão de que o balão aquece, alguém a gritar que já podemos largar, e à volta a alegria de todos a dançar.
Esperava que a recordação do São João me prendesse, pesasse, me retirasse do momento presente, e me convencesse com pena que era outro o lugar onde devia estar. Essa consciência, porém, passou por mim como uma brisa muito leve, um pensamento neutro, acompanhado do sacrilégio de achar que até tinha sido bom ter ficado, e que teria perdido muito em não estar naquele dia naquele concerto. Pior até, senti que pertencia tanto ali - tão naturalmente todos estavam envolvidos na música e na natureza - como à festa da minha terra.
A felicidade e o sol mantiveram-se uns dias, poucos dias, até começarem a aparecer pais e avós nos seus carros, para que celebradas as graduations e após uma breve despedida, surpreendentemente leve para quem não vai voltar, fosse empacotado o recheio dos quartos nas malas, e upa-upa. A sensação de vazio que nos ocupa quando todos vão embora, os cafés e as bibliotecas ficam sem alma, e apenas o coro imperturbável dos pássaros permanece o mesmo, tem de me servir de lição, dizia eu a mim própria, para não depositar aqui nunca, ou demasiado, o meu coração. Não é por falta de aviso, penso, quando olho de relance, incomodada, o livro de Simone Weil, O Enraizamento (ou em inglês, The Need for Roots), que li há pouco tempo e que nos diz que criar raízes é a mais importante necessidade do espírito, que exige que o ser humano retire quase toda a sua vida espiritual, moral e intelectual do espaço a que naturalmente pertence. Os outros espaços são importantes apenas como influências externas que tornam a própria raiz mais intensa, e que não devem substituir ou confundir-se com o espaço original, como quando um pintor talentoso vai a um museu confirmar a sua própria originalidade.
A ideia de Simone Weil é que as margens do rio Cam que circulam placidamente em margens estreitas, e a relva amarelo tostada, me devem parecer estranhas e confirmar na minha memória os traços próprios e contrastantes do oceano atlântico, do rio Douro e do verde forte do Minho. Mas é difícil, quando lá estamos, não pertencer totalmente a Cambridge, não integrar em absoluto a natureza, enquanto percorremos o trilho de Grantchester. Grantchester é um vilarejo pré-romano a que se chega a partir do centro de Cambridge, seguindo sempre a linha da água do rio Cam, muito famoso pelo Orchard, um café antigamente frequentado por Virginia Woolf, Ludwig Wittgenstein, E.M. Forster, John Maynard Keynes, entre outros. Tem também uma igreja muito antiga e uma pequena série de casas com orquídeas e jardins, uma das quais era arrendada por Rupert Brooke para estudar para os exames, longe da confusão da cidade. Foi também aqui que Bertrand Russell escreveu páginas e páginas de tese, que depois teve de transportar de carro de cavalos para a Universidade, e Lord Byron tomava banho, na parte do rio que ficou conhecida como Byron’s Pool.
Mas dizia eu, é impossível não retirar toda a espiritualidade de Grantchester, quando se está em Grantchester. Rupert Brooke costumava remar num barco pequeno as três milhas desde Cambridge até Grantchester. Em noites de lua cheia, sabia que estava a chegar a casa pelo som de um certo álamo que lá crescia, cujas folhas farfalhavam levemente mesmo em noites calmas e sem qualquer ruído. Refugiado da cidade, escreveu uma carta: “E aqui estudo Shakespeare e vejo muito poucas pessoas... circulo por aqui descalço e quase nu, contemplando a natureza com um olhar calmo. Não pretendo compreender a natureza, mas dou-me muito bem com ela, tal como se fosse uma vizinha. Eu ando com os meus livros, e ela anda com as suas galinhas, tempestades e coisas, e somos ambos muito tolerantes. Às vezes tomamos café juntos.” (*)
Apesar de não ser inglesa, como era Rupert Brooke, não me acredito que a natureza de Grantchester me acolha menos bem, e que descalça, a nadar no rio, num fim de tarde entre amigos, não me deixe misturar com Cambridge.
Um dos mais belos poemas sobre Grantchester foi escrito por Rupert Brooke a partir de um café em Berlim, Café des Westens. Imagino-o a olhar pela janela do café e a pensar como estará Cambridge naquele momento. O poema é uma maravilha:
"Say, do the elm-clumps greatly stand / still guardians of that holly land? / (…) And sunset still a golden sea / From Hastingfield to Madingley? / (...) Oh, is the water sweet and cool, / Gentle and brown, above the pool? / And laughs the immortal river still / Under the mill, under the mill? / (...) Oh! Yet stands the church at ten to three? / And is there honey still for tea?”
“Diz-me, ainda se erguem imponentes os olmeiros, / Guardiões eternos daquela terra sagrada? (...) E o pôr do sol ainda é um mar dourado, / De Hastingfield a Madingley? / (...) Oh, ainda é a água doce e fresca, / Gentil e castanha, sobre a piscina? / E ri o rio imortal, / Sob o moinho, sob o moinho? / (...) Oh! A igreja ainda marca dez para as três? / E ainda há mel para o chá?”.
Grantchester não me parece estranho. Simone Weil gostaria que passear em Grantchester me fizesse evocar o Porto – e faz. Penso nos cisnes do parque da cidade sempre que vejo um cisne em Cambridge. Mas o contrário também é verdade. Lembrar-me-ei do rio Cam quando circular no parque da cidade, e é possível que um dia o meu olhar distante, visto do lado de fora da janela de um café, se fixe em Cambridge, não numa cidade externa, e por isso real – como ela é - mas em Cambridge como foi, na minha versão das “dez para as três”, onde ainda estou, onde hei de estar, em simultâneo. Como posso ser um pintor que olha uma pintura de um museu e aprecia a que tem em casa, quando fui eu que pintei as duas?
(*) “And here I work at Shakespeare and see very few people (…) I wander about barefoot and almost naked, surveying nature with a calm eye. I do not pretend to understand nature, but I go on very well with her in a neighbourly way. I go on with my books, and she goes on with her hens and storms and things, and we’re both very tolerant. Occasionally we have tea together."
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