Meios bilhetes, ou uma posologia contra o síndrome de Stendhal


    A arte está para a alma como o Rossio para a Betesga. Por isso a arte nos é dada em goles pequenos, sempre permitindo um tempo para um suspiro, para a alma respirar. Talvez seja essa a razão por que um poema se divide em estrofes, ao longo das quais avançamos só quando estivermos preparados, e um vinil em dois lados, que viramos apenas se tivermos forças para o fazer. 

    Não é por acaso que os concertos, peças de teatro e o cinema fazem sempre um intervalo. Aí, porque são várias as almas que em simultâneo absorvem a arte, é preciso um cálculo supremo que determine o momento em que estatisticamente a maior parte delas precisará de suspirar, e assim o intervalo se impõe. De outra forma, as salas de cinema e espetáculo teriam de parar a peça no minuto dez, para uma alma anotar aquela frase fabulosa, no minuto vinte, para outra alma recuperar o fôlego depois de um momento de grande tensão, e no minuto quarenta, para recuperar a memória de uma certa passagem no início da peça e que agora é importante.

    Todas estas lucubrações me invadiram o espírito a meio da visita à Pinacoteca de Brera, num momento em que a minha alma, baqueada, e em grande frustração, ferozmente se insurgiu contra os diretores dos museus que, se apercebeu nesse momento, a têm agredido todos estes anos.

    Certamente saberão os diretores dos museus que uma exposição requer que a nossa alma se aproxime de um quadro, e o perscrute com calma, que por sua própria iniciativa aprecie cada detalhe e se fascine com a textura a picotado e o dourado brilhante das auréolas dos santos, se concentre na história de cada obra, absorva as feições de cada personagem retratada, até mesmo as secundárias. O convite é feito pelo próprio quadro à nossa alma. Não entra nela como uma flecha, ao contrário da música, e não se dirige a atores distantes, antes de se dirigir a nós, como o cinema. Por isso é natural que a partir do meio da exposição nos sintamos exaustos, como se a energia e curiosidade nos tivesse sido sugada, que não consigamos senão olhar de relance toda a parede, incluindo no mesmo movimento o quadro da direita, o da esquerda e todos os que os medeiam, num esgar indefinido, e que, apoquentados por saber que alguns daqueles quadros para que só genericamente olhamos são de certeza quadros tão bonitos como os primeiros, não podemos senão aceitar conscientemente o risco de perder para sempre aquela beleza.

    Tal era a exaustão em que abandonei a Pinacoteca de Brera, que a minha amiga, que encontrei depois, não hesitou em diagnosticar-me o síndrome de Stendhal. Face à minha regular hipocondria, fiquei feliz por descobrir um nome para o meu estado. O síndrome de Stendhal é uma doença psicossomática que causa aceleração do ritmo cardíaco, vertigens, desmaio, confusão, exaustão e/ou alucinações, e que ocorre frequentemente, dizem, a turistas que em Florença se sentem assoberbados com tanta beleza. Segundo a presidente dos Amigos de Florença, cerca de dez a vinte pessoas por ano apresentam este quadro clínico.

    Há um filme com o nome desta síndrome, cujos primeiros quinze minutos (antes de se tornar um pesadíssimo filme de terror não anunciado), mostram uma jornalista que entra na Galeria dos Uffizi e começa a delirar com as obras de arte que encontra: ouve, como estivesse dentro da pintura, o sopro das Vénus, o relinchar dos cavalos nas grandes batalhas, o ribombar dos tambores, sente o olhar perscrutante das personagens apontado para ela, procura sentir a relva fresca e os líquenes dos quadros a óleo, é aturdida pelo grito e vê-se esganada pelos cabelos da medusa de Caravaggio, repara no pormenor de uma pessoa naufragada, da qual já só se lhe veem as pernas, até começar a ver os frescos do teto a rodopiar, e tombar finalmente no chão, hipnotizada e febril. Eu, que só fiquei cansada, digo em defesa da minha exaustão, que a meio da exposição já tinha acrescentado à representação visual que farei para sempre da tristeza, a expressão da Lamentação de Mantegna, e à representação da angústia, a Crucificação de Fabriano. São imagens fortes, que justificam bem que a alma precise do resto do dia para delas se recuperar.

    Insurge-se a minha alma contra os diretores dos museus, que estando cientes de tudo quanto descrevi, nunca me ofereceram “meios bilhetes”, ou bilhetes que me permitam escrever: “a minha alma parou no quadro X”, para que possa voltar no dia seguinte, ou num limitado período, para apreciar o resto da exposição, começando a visita a partir desse quadro em que tinha ficado parada. Os funcionários do museu poderiam assinar o bilhete, comprovando que ficamos exatamente nesse lugar, e se o museu tivesse funcionários que verdadeiramente se preocupassem com o estado de alma dos visitantes, poderiam sugerir-lhes que interrompessem a visita, ao primeiro sinal que a alma desse de desistir de ler a explicação dos quadros, ou ao primeiro esgar completamente absorto. 

Lamentação, Mantegna.             Crucificação, Fabriano.   


    







 


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