A neurastenia das palavras defenestradas

Quando leio Agustina Bessa-Luís sinto sempre que há uma portinha da minha alma que se abre, pronta para fazer entrar uma fileira de palavras e de significados. Trazem memórias de um antigo país rural, de um tempo em que os donos das palavras dialogavam com a natureza, que contemplavam sem distrações. Só assim era possível descrever “o choro da água nos tanques”, “o sussurro dos ribeiros que deslizavam em agonia nos pedregulhos brancos”, o range-range das tábuas da salinha, a soleira quente do pátio, a placidez dos crepúsculos de setembro e a mansidão do ar que cheirava ao mosto da estação.

Só quem se demora na natureza pode conhecer as subtilidades de cada coisa, sabendo atribuir a cada uma um termo específico. Não é um terreno baldio mas uma bouça, não é uma rua estreita mas um quelho. Em vez de um semanário, temos um hebdomadário da lavoura. Um corvo não canta, mas crocita, o dia não nasce, mas dealba. Se há um baloiço, as crianças não se limitam a brincar nele, mas nele se rebuçam, o que denota a total imersão no objeto que as entretém. As tias de Agustina não conversam sobre banalidades, mas perlengam. Quando estendem a toalha violentamente, estiraçam-na. Além disso, intensificam-se as qualidades de uma coisa se as soubermos caracterizar de mais de que uma forma, repetindo em sinónimos essas mesmas qualidades: se um campo for melancólico e merencório, se os relâmpagos forem retumbantes e ingentes. 

Ah, o que diria eu se tivesse o vocabulário de Agustina, que belas descrições conseguiria das minhas viagens. Quão profundamente mergulharia no mundo que me rodeia se tivesse esta capacidade de o descrever e de o sentir, e se a calma da sua contemplação não fosse intervalada pelas notificações do email e das redes sociais. Disse que as palavras de Agustina evocam um antigo país rural, porque ainda que o país se mantivesse igual, por muito que se nos apresentasse da mesma forma – e não apresenta -, não o podemos percecionar perfeitamente se não soubermos qual é a palavra que corresponde a cada coisa que nos rodeia. 

Maupassant, discípulo de Flaubert, ensinava que a linguagem é a especificidade infinita, que não há dois grãos de areia idênticos, e que seja o que for que pretendamos dizer há apenas uma palavra para o exprimir, um verbo para o fazer mover, um adjetivo para o qualificar. Para descrever um incêndio ou uma árvore numa planície temos de observar esse fogo e essa árvore, até que não se pareçam com nenhum outro fogo e nenhuma outra árvore. Agustina Bessa-Luís seguia este ensinamento na perfeição, escolhendo as palavras uma a uma a partir de um leque infindável de palavras de que tinha memória, e que conjugava com exatidão para lhes atribuir um significado preciso.

A memória tem aqui um papel fundamental. Não é que não conheçamos as palavras que a autora utiliza. O problema é que algumas delas nos surpreendem como os velhos conhecidos, que nos fazem estremecer por uns segundos enquanto não nos lembramos exatamente de quem são. Na verdade, os jornais, os relatórios, os discursos comuns, usam sempre as mesmas palavras. Aliás, quanto mais se acentuar a tendência para recorrer a modelos de linguagem generativa como o ChatGPT para elaborar discursos, mais depressa veremos sair da nossa memória as palavras que emprega Agustina. Embora o ChatGPT saiba o que elas significam, treinado como está com múltiplos dicionários exaustivos de palavras, não é provável que as utilize, desenvolvido como é segundo uma lógica preditiva que lhe exige que utilize a palavra que provavelmente surgirá na sequência de outra. É escusado dizer que, estatisticamente, as palavras genéricas são mais utilizadas do que as palavras específicas, e daí o desaparecimento das últimas.

A favor da memorização, uma capacidade cada vez mais em desuso no ensino e, aparentemente, cada vez mais desnecessária no dia-a-dia, George Steiner defendia que aquilo que sabemos de cor amadurecerá e desenvolver-se-á dentro de nós. Segundo o autor, o texto memorizado interage com a nossa existência temporal, modificando as nossas experiências e sendo dialeticamente modificado por elas. “Quando mais vigoroso for o músculo da memória, mais bem protegido estará o nosso ser integral”. 

Por conseguinte, não só a linguagem é cada vez mais simples, como cada vez temos menos necessidade de memorizar o que quer que seja. Além de não sabermos descrever com precisão uma viagem, teremos dificuldade em argumentar com profundidade quando conhecemos e memorizamos menos palavras do que antigamente e é natural que vejamos também enfraquecer o nosso espírito crítico.

É um problema grave, esta perda de palavras, contra o qual já fomos avisados vezes sem conta. Orwell tinha uma expressão específica para isto, “Newspeak”, através da qual um estado totalitário restringia a gramática e o vocabulário dos cidadãos com o objetivo de diminuir a sua capacidade de pensar. A perda de palavras leva à deterioração de uma democracia, à perda da criatividade, e envolve também a perda da nossa história e cultura que está tão cheia de palavras difíceis e de significado. 



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