A pessoa mais séria do mundo​

 
    Somos todos muito sérios e muito adultos, ou melhor, parecemos todos muito sérios e muito adultos. Mas hoje, enquanto alguém explicava as razões pelas quais um certo Regulamento é desadequado, todos fingiram não ver o suster de respiração coletivo e os olhos que disfarçadamente se voltavam para a máquina de venda automática. A quem estava de costas, como eu, e não se podia virar de repente, só lhe restava acompanhar o olhar atento da pessoa que estava em frente à máquina, cuja apreensão e sucessivo alívio indicavam que tudo se mantinha igual.​

    É que há dias que enfrentamos um grave problema: ao n.º 30 da máquina automática do Instituto corresponde sempre um chocolate Ritter, mas os sabores desse chocolate vão variando, e o que neste momento está na frente da fila é de Massapão. Como é natural, embora o Massapão seja originário de Lübeck, ninguém o aprecia. Amargo como a amêndoa, tem de ser engolido antes de o nosso cérebro poder processar o sabor, mas não só demora uma eternidade a enfiar o dente naquela massa pastosa, como depois é difícil de saber o que fazer com ela, porque se desfaz, ou derrete, ou se mistura nos dentes, ou qualquer coisa parecida. Seja como for, a ter em conta o número de dias que já passaram desde que o Massapão está à espera que alguém o escolha, ninguém o quer. E pior ainda é que atrás, ou melhor, depois dele, alinham-se o chocolate com nozes, Waffle, leite dos Alpes, café – todos muito desejados. O motivo da angústia: saber quem terá a sorte de estar por perto assim que o Massapão cair no alçapão dos produtos escolhidos.​

    Mas como dizia, parecemos todos muito sérios. O problema das pessoas muito sérias é que já se sabe como procedem: a que estiver mais próxima da máquina quando o Massapão cair, vai dirigir-se à máquina vagarosamente, perscrutá-la com calma, se necessário for com o telemóvel na mão (para que se pense que se trata do ato menos refletido da sua vida, e para que não haja a mínima suspeita de que intencionalmente tinha andado a cirandar ao lado da máquina). Depois de olhar para todas as opções, e fingir que as considera longamente, vai marcar o primeiro dígito do Ritter, n.º 3, eliminar a opção, fingir que ainda tem que pensar, que está tentado com o Kinder, e depois finalmente marcar o 30, guardar o chocolate na carteira, e mostrar que vai esperar até à hora do jantar.

    ​Já eu, posso garantir que se por lá andar nessa altura, mal veja o n.º 3 a ser premido, irei agradecer ao futuro dono do Massapão, explicar-lhe que me fez um grande favor, e que estava à espera daquilo há muito tempo. Como entretanto já estarei ao lado da máquina no momento da queda no alçapão, não terei adversários para marcar o número 30, Nozes. Ouvido o "bac" da queda, vou abrir o pacote e provar o primeiro quadradinho, mas não vou embora antes de marcar o número 30 mais duas vezes, e levar os dois chocolates seguintes comigo. Depois de ter a máquina parada vários dias, não quero cair na asneira de estar mais uns dias com a visão, também deprimente, do Café.

    ​Intenções declaradas, espero que a sorte esteja à espreita, e se não houver sorte, que haja justiça. Quem finge ser sério estando entusiasmado, que mais poderá esconder? Eu com três chocolates na mão, posso não parecer, mas sou a pessoa mais séria do mundo.




    

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