Duas Joanas e um guarda-chuva
Segundo as regras portuguesas, o nome de uma criança deve compor-se, no máximo, por seis vocábulos gramaticais, dos quais dois podem corresponder ao nome próprio e quatro a apelidos. Além disso, é uma regra portuguesa querer tudo a que se tem direito.
Os pais portugueses são orgulhosos dos seus nomes e apelidos, pelo que os usam e dão aos filhos mesmo quando os apelidos são pleonasmos, quando se repetem, quando são o contrário um do outro, quando rimam e são cacofónicos, quando pertencem à mesma família de palavras, quando ampliam o apelido anterior, quando se referem à profissão da pessoa que trabalha com o objeto do apelido anterior, quando são cómicos. Os pais portugueses dão apelidos porque sim, porque lhes pertencem e querem que os filhos os mantenham. Há pais que dão Maria como primeiro nome, apesar de Maria não se ler, e assim permitem que as filhas tenham a sorte de ter o mesmo primeiro nome da mãe e das avós, o que sempre achei maravilhoso. Por isso, na escola, quase todos temos quatro apelidos, e um pedido nosso é sempre um “pedido de muitas famílias”. Somos muitos felizes, e nunca ninguém nos chateou.
Até sermos registados no sistema de saúde britânico. A história é esta: quando vivi em Londres, registaram-me com os dois apelidos do pai; e ao voltar para Inglaterra, uns anos depois, o sistema nacional de saúde voltou a registar-me com os dois da mãe. Não tive culpa nenhuma, mas ligaram-me para ir ao centro de saúde com urgência porque tinha sido “duplicada”. Quando cheguei, sem saber o que se passava, a senhora no atendimento estica dois papéis na mão, como se estivesse a ver a dobrar, agita-os à minha frente, e diz: “Look, there are two Maria Joana’s”. Percebi rapidamente o problema, e expliquei-lhe que tinha quatro apelidos. Mal eu acabei a minha explicação, a senhora revira os olhos, e repete incrédula: - four surnames?. Eu percebi que qualquer coisa que dissesse era retórica, mas com a consciência do transtorno administrativo que causei, voltei a responder que sim, que era normal. Não me ouviu, e continuou a querer saber se eram mesmo quatro. Como não me valia pena voltar a dizer que sim, disse-lhe, com gentileza, como forma de provar que a situação podia ser bem pior: “e sabe, quando casar é possível que venha a ter seis”. O objetivo era só que parasse de gritar, mas virou costas, e deixou-me sozinha com os meus quatro apelidos.
Uns dias mais tarde, quando fui buscar um livro que requisitei – os livros são guardados em gavetas com a primeira letra do apelido do requisitante -, não o encontraram. Eu via-os a levantar e a agachar, todos à procura do livro, mas eu nunca adivinhei que o problema pudesse ter a ver com os meus nomes. Disse que não tinha pressa nenhuma, que estava por lá, e que quando o descobrissem que mandassem email. Recebi um email 25 minutos depois. Como se deve imaginar, não ficaram nada contentes quando me voltaram a ver aparecer: o meu cartão com dois apelidos, o registo da requisição com outros dois. Comecei a explicar que em Portugal..., mas a senhora decididamente estava desinteressada em absoluto de qualquer explicação. Quando lhe perguntei se estava tudo resolvido com a requisição, nem olhou para mim.
Tem graça a reação das pessoas ao problema. Uns ficam curiosos, e perguntam que dois apelidos vou escolher para os meus filhos, outros ficam todos contentes quando descobrem o enigma: “you know, I was looking on J, but I realized it could be M, and I was very right. Very happy I found your package!”. Outros, com mais sentido de humor, dizem: “well, then, I should bow to you”, o que tem graça porque o país monárquico é deles, e não meu. Sou conhecida pelo porteiro como a rapariga dos muitos apelidos (“the girl of the many surnames”), o que dito de uma forma querida, é muito simpático. Certo dia, o porteiro, angustiado e cansado, chegou a dizer-me que eu devia escolher um apelido, mas quando eu perguntei qual dos quatro devia escolher, concluiu, a sorrir, –o nome é seu, não posso decidir como o quer usar. E eu também sorri, porque achei piada, mas já suspeitava que não havia hipótese de concluir a história de outra forma. Nunca voltei a falar do assunto, e continuei a ter quatro apelidos.
Hoje em dia somos todos muito amigos. Se chove e me veem sair sem guarda chuva, oferecem: Oh Joana, take this very big umbrella! E claro que penso, para o meu big surname? Para as duas Joanas? Mas há muita coisa que se pensa e não se diz, por isso sorrio, sorrio, agradeço, agradeço. Como os ingleses que dizem “good, good”, quando lhes perguntam se estão bem, e eu acho muito divertido. Nunca se deve pedir a alguém para poupar palavras…..ou apelidos.
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