A cor do nosso telhado

  Manuel António Pina dizia que não nos devemos afastar mais do que nos permitirem metade das nossas forças e a visão da cor, ao longe, do nosso telhado. E assim também em pequena, quando ouvia a parábola do semeador que escolhe uma terra boa para deixar cair as sementes, não imaginava que a terra boa não fosse a terra do jardim de casa, por baixo desse telhado. Não ocorre a uma criança, nem a Manuel António Pina, que tinha alma de criança, que as telhas do nosso telhado se possam afastar da vista do telhado em que vivemos, ou que esse telhado possa ser completo por telhas afastadas. Pressupondo naturalmente que a cada um só pertence um telhado, porque se admitirmos que podemos ter dois telhados, falamos de duas almas, e logo teremos “duas almas em guerra, sabendo que nenhuma vai ganhar, de dois sóis, e de uma cama na encruzilhada”, como diz o verso de Jorge Palma. 

        Ora, isto cria-nos um problema. O semeador da minha infância passa a ter um buraquinho na terra, debaixo do telhado que é o seu, onde põe as sementes, e escava um outro buraquinho, noutro terreno de onde não vê o telhado. Vai e vem, num correr constante, mas sem saber se as sementes de um não são levadas pelo vento, enquanto se afasta. Para o saber, tinha que ficar, e para ficar, não podia ir, o que (só) é um problema quando há do outro lado telhas de que precisa para completar o telhado de sua casa. 

        Coincide a minha vinda para a Alemanha com a estreia do filme A Sociedade da Neve na Netflix, que entre muitas outras coisas nos mostra que a maior alegria é a de regressar onde nos esperam, que é sempre o local da nossa partida, e ter sempre a força necessária para ajudar os nossos amigos. E se os nossos amigos não vão connosco, e se a maior alegria é voltar, corremos sempre o risco de andar a plantar sementes em terrenos áridos, de não conseguir evitar o vento que passa, e de não ver os pequenos raios de sol que brilham debaixo do nosso telhado, onde vivem os que nos são queridos.

        Há circunstâncias em que é certo que algumas sementes se devem plantar longe do telhado, e casos em que não há outra opção.  Há quem não tenha um telhado, quem tenha guerra por baixo dele. Há quem abandone o seu, para defender o telhado de outros, como alguns dos meus amigos de Cambridge, que vivem longe do seu telhado a investigar temas importantes, como a proteção de grupos vulneráveis, a defesa da democracia, a cura para o cancro, ou o tratamento de doenças infecciosas. Mas às vezes, depois ter vivido fora muitos anos, e de me ter cruzado com tantos “estrangeiros”, fico com a sensação inquietante de não saber bem porque alguns abandonam o telhado. Alguns talvez não tenham um bom telhado, o que me angustia porque me lembra de que eu tenho um bom telhado, e que devia regressar. Outros talvez sejam bons em finanças e seguem a lógica da diversificação de investimentos, ou da diversificação de canteiros com as suas sementes, o que à medida que o tempo avança cada vez me parece fazer menos sentido em assuntos pessoais. Mas muitos ainda, estou convencida, nunca perderam um minuto a pensar no assunto, e andam ao sabor do vento, o que não teria mal se o vento não pudesse arrastar também o telhado original. 

        É fácil convencer-me de que tenho uma missão, e de que há umas telhas longe do meu telhado de que preciso, porque o Instituto para onde vim tem os livros necessários para a minha investigação, porque é o Instituto onde o meu avô investigou e trabalhou, e a razão pela qual a mãe nasceu na Alemanha. Vir buscar umas telhas significa aproximar-me um bocadinho mais da minha família, conhecer a língua que a minha mãe aprendeu a falar, as ruas desertas e silenciosas ao domingo, os montões de neve que os meus avós tinham de limpar para garantir que não caía ninguém na parte do passeio que lhes pertencia, e o cenário de tantas histórias que ouvi contar. 

        O problema é que mesmo quando sabemos existir uma missão, ainda assim se pergunta quantas telhas são precisas para a cumprir, e quantas não serão já demais. Convenci-me também de que quanto mais bem definida a missão, mais motivados e com mais alegria a cumprimos, o que quer dizer que é melhor saber bem que se vai buscar a telha A, D e F, em vez de ir levianamente buscar umas meras telhas avermelhadas. Gostava de ser como a atriz de Charing Cross Road, que no avião para Londres, quando lhe perguntam, business or pleasure? responde, unfinished business. O meu desejo é que o meu business e o dos meus amigos seja apenas o de ir buscar telhas que encaixem e completem o nosso (único) telhado, que nunca esqueçamos a sua cor para não perder tempo com telhas erradas, e que como diz Pina, tenhamos sempre metade da energia para voltar, e sementes firmes na terra que não sejam levadas pelo vento. O risco do vento corre-o quem tem, e quem não tem, uma missão a cumprir, mas o meu desejo e esperança é o de que tenhamos sempre a paz de saber que não teríamos conseguido evitar que o vento levasse as sementes, mesmo que tivéssemos vivido acampados no jardim, o que é quase sempre verdade, mas pode ser difícil de aceitar quando não estivemos lá para confirmar a força do vento e ter a certeza disso.




 



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