Não lugares

 



    Em dezembro, Cambridge fica vazio. As ruas desertas, o som das rodinhas das malas cada vez mais distantes, até deixarem de se ouvir, os horários dos serviços mais curtos e com menor frequência à medida que o Natal se aproxima, e a sensação angustiante de que cada um, dia após dia, vai à sua vida. Como se houvesse outra vida, “a” vida, em oposição a “esta” vida, o que nos lembra da inevitabilidade do destino, e de que “esta” vida também chegará ao fim, daqui a mais ou menos uns “terms”. Um dia também eu levarei as minhas malas num carrinho de mudanças para outro lugar qualquer, vrum. Como dizia Javíer Marías a propósito de Oxford, “os habitantes de Oxford não estão no mundo”, e correm numa cidade “que os contém, onde nem sequer existem no tempo”. Lembra-nos de um número infinito de alunos que ao longo dos tempos foram sucessivamente ocupando os mesmos quartos dos Colleges, circulando de bicicleta nos mesmos passeios, jantando nas mesmas mesas corridas, por baixo de uma capa preta indistinta, até serem substituídos, no ano seguinte, por outros tantos alunos exatamente iguais a eles. E não posso esquecer, o que me lembro sempre que passo pelos “porters” das residências, da história que conta o mesmo autor, acerca do porteiro de uma College, de quase noventa anos, que já não sabia o ano em que vivia, viajando, em cada dia, para a frente e para trás no tempo. Uns dias, acordava em 1947, e tratava o aluno que tinha diante de si pelo nome de um aluno desse ano já passado, ou acordava um bocado depois, na década de sessenta, e dava ao aluno o nome de outro aluno desses tempos.

    Tudo isto me ocorreu enquanto passeava em direção a um local de culto chamado “Jack’s Gelato”, onde, não me agradando nenhum dos sabores da lista, me lembrei que tinha ouvido uma rapariga pedir um dia pelo “secret flavour”, um gelado secreto, reservado só para quem o pede, um segredo entre os donos da loja e os habitantes locais, ou locais o suficiente para saberem da existência do segredo. E o empregado do balcão sorriu-me, com um ar traiçoeiro, e disse-me baixinho, - é de Pavlova, que foi o que em conluio decidimos que ia ser. 

    E regressei a casa, de gelado na mão. Pensei nos “não-lugares”, que Marc Augé caracteriza como lugares de passagem. Se nos disserem: para chegar ali, passas por “aqui” e “ali”, esse “aqui” e “ali” são meros instrumentos para chegar a um sítio, são meras passagens. Marc Augé utiliza os “não lugares” para designar hotéis, estações de comboio e aeroportos, grandes centros comerciais, estações de pagamento automático, enfim, diz ele, locais condenados a uma individualidade solitária.

    A minha mãe não precisa de filósofos para pôr em prática estas definições. Pergunta-me sempre, mal chego a um sítio novo - nem sei eu ainda bem em que sítio estou - se já encontrei o meu café. Eu resmungo que não, que ainda não tenho um café. Terei, no meu tempo. Mas o que a minha mãe quer perguntar é se já transformei o não-lugar, qualquer que ele seja, num lugar. Faz o mesmo noutras situações, como nas viagens de carro, quando decide pura e simplesmente virar à direita e abandonar o seu caminho para ir visitar um sítio que viu anunciado na plaquinha da estrada, descobrindo, como aconteceu num dia de férias, um castelo abandonado à venda. Aprecia-o, e volta à estrada. Ao regressar, porém, o lugar que ficou para trás deixou de ser um “não-lugar”.

    E sim, no “meu” tempo terei o meu café, como tenho agora o Iris, onde, mal chego à pontinha da fila, vejo os funcionários a perguntar por símbolos (“um” ou “dois”?) se quando chegar ao balcão vou pedir um”single” ou um “double”, já que dantes só pedia “single”, e quando resolvi mudar, resmungaram “ai, ai, que ainda é cedo para isso… em maio vai ser ‘triple’?”. Por outro lado, Marc Augé tem razão: há não-lugares que eu nunca consegui transformar em lugares. Em Londres nunca tive o meu café, porque fazia a asneira de ir ao Prêt - “to have in, or take-away? Next”. Assim como nunca consegui tornar a Padaria Portuguesa do Saldanha num lugar, apesar de ir lá mais do que uma vez por dia. As senhas para a frente e para trás, tudo a correr. Nunca ninguém me fixou ali, ou reconheceu.

    Talvez Marc Augé saiba muito bem o que quer dizer, mas não me parece que haja características específicas que tornem os lugares ou as pessoas que só por acaso se cruzam connosco, em não-lugares. Os lugares com segredos que conhecemos (como o Jack’s Gelato), aqueles de que guardamos memórias, ou onde existem pessoas que nos reconhecem porque reparam, por exemplo, na quantidade de café que pedimos, nunca serão não-lugares, mesmo que fiquem no fim do mundo, ou nunca mais regressemos. O café do aeroporto deixa de ser um não-lugar quando a empregada me diz que aquele sumo que eu pedi é o sumo preferido da filha. 

    Podemos viver uma vida inteira no mesmo sítio, rodeados de não-lugares, ou viajar para sítios diferentes todos os dias, cheios de lugares. Um dos meus livros preferidos diz que numa segunda vida apenas vamos ter ao lado as pessoas a quem prestamos atenção durante a primeira vida, aquelas que nos disseram alguma coisa, com quem nos identificámos. O porteiro do college de que fala Javíer Marías, apesar de baralhado, vai ter uma segunda vida repleta da presença dos alunos cujo nome fixou. Eu também vou ter os meus Porters, o senhor do gelado, a senhora do café do… aeroporto. Como cenário de fundo, o castelo abandonado que a minha mãe me obrigou a visitar nas férias.




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