Wim Wenders e grinaldas de Natal
Na secção das flores, e num vaso tão pequeno como o das outras flores, o meu supermercado de Cambridge vendia uma minúscula árvore de Natal. Ou melhor, um pequeno tufo verde enfeitado com umas bolinhas coloridas de algodão. Trouxe-o comigo, e devia estar de tal forma orgulhosa e feliz com o tufo na mão, que os outros clientes se riram e foram lá buscar outros tufos iguais. O entusiasmo propagou-se depois às minhas flatmates, e recebi montes de selfies com a minúscula árvore a espreitar.
Talvez tenha testemunhado o mesmo fenómeno de “propagação” umas horas mais tarde. A Grantchester Road é uma rua de casas vitorianas de tijolo laranja, todas praticamente iguais, com grandes bow windows brancas, muito próximas do muro que as separa da rua. Apesar de nada permitir distinguir esta descrição da de mais uns milhares de ruas em Inglaterra, esta rua deixa-nos com uma sensação diferente das outras, porque os seus moradores aderiram em massa às decorações de Natal. Alguns fizeram bolas de neve e desenhos com tinta branca nas janelas, outros penduraram luzes nas janelas, e todos sem exceção puseram grinaldas à porta. E como as grandes janelas ficam ao nível dos olhos, podemos ver o interior das salas: as árvores bem decoradas, as montanhas de livros, os instrumentos musicais, as meias de Natal na lareira. Pensei como tudo aquilo era bonito, mas também como era contagiante. Se um vizinho põe uma grinalda à porta, o outro vizinho pensa - que bonito que isto é, vou também por uma grinalda na minha. E por isso foi inevitável concluir em voz alta que naquela rua, eu seria certamente muito feliz. A amiga com quem estava, que sempre viveu em Inglaterra, riu-se, mas respondeu, “não podes confiar assim nas aparências. As pessoas que aqui vivem podem não ser assim tão felizes. Só decoram porque manda a tradição”. Eu achei o comentário estranho, tão estranho que nem tive reação. Queria ter respondido intuitivamente que era indiferente que fossem ou não felizes, se fazem os outros felizes, mas ao mesmo tempo pensei, quem não fica satisfeito a pendurar uma grinalda?
Ontem fui ver o novo filme do Wim Wenders, sobre um homem que limpa as casas de banho públicas de Tóquio com esmero, rigor e dedicação. O filme chama-se Dias Felizes, apesar de não serem, à partida, dias felizes. O protagonista (Hirayama) trabalha de sol a sol, e vive sozinho, tendo cortado relações com a família toda. Só que a ideia inicial de pobreza vai-se atenuando gradualmente ao longo do filme, e vai sendo substituída pela sensação de uma grande alegria interior, através de detalhes que vão ficando mais nítidos sob a batuta magistral de Wim Wenders. Todas as noites, o protagonista sonha com o momento mais feliz do seu dia, e ganha alento a partir dele: a mão que deu a uma criança perdida na casa de banho à procura da mãe, a boleia que ofereceu ao seu colega, o pequeno papel com o jogo do galo que alguém deixou num lugar secreto da casa de banho e a que o desconhecido e o protagonista acrescentam novos símbolos diariamente, os livros que lê e que já não cabem nas prateleiras, as cassetes de música que ouve.
Curiosamente o protagonista sonha a preto e branco, e as imagens com que sonha são representadas como sombras negras em movimento, iguais às folhas da árvore do seu jardim, que o protagonista contempla e fotografa todos os dias. Nos créditos finais do filme aparece a palavra Komorebi, que os japoneses usam para descrever as sombras dançantes que ficam no chão sempre que a luz do sol atravessa as árvores. Mas o momento que mais me marcou no filme foi a conversa entre Hirayama e um senhor diagnosticado com uma doença terminal, em que este repara que uma sombra negra não escurece outra sombra negra, e juntos põem-se a experimentar com as suas duas sombras para concluir que é verdade. E eu concluí, que se a sombra negra não influencia outra sombra, a luz sim, clareia as sombras negras.
Não há nada no filme de Wim Wenders sobre o Natal, mas é impossível não reparar na semelhança entre este filme e o verdadeiro filme de Natal, “do céu caiu uma estrela”, em que um anjo mostra como as coisas pequeninas que a personagem fez ao longo da sua vida, aparentemente indiferentes, deram luz à vida dos outros.
O que me leva de volta às árvores de Natal e às grinaldas nas portas. A minha amiga tem razão, todos aqueles moradores podem não estar felizes, podem estar sozinhos, ou sentir a falta de quem dantes se fazia presente, mas como a sombra negra de cada um nada muda as sombra dos outros, mais vale ser luz, e tentar alegrar os outros. Há uma passagem do livro Clarabóia de Saramago em que o escritor diz: “- Vivemos entre os homens, ajudemos os homens. E que faz o senhor para isso? Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora”.
A mim, a vida deu-me umas folhinhas, e vou fazer umas grinaldas para pendurar na minha porta.
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